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1.
A viragem decisiva no desenvolvimento económico que caracteriza a década de 1950, trazendo uma progressiva hegemonia do capital industrial, põe na ordem do dia a necessidade de aplicar as modernas técnicas de programação e controlo do crescimento da cidade, no sentido de ordenar “racionalmente” aquele crescimento. Mais do que nunca é necessário operar mudanças que prestigiem a cidade modernizando-lhe a sua imagem. A necessidade de libertação de terrenos no centro da cidade, tão densificada pelas denunciadoras ilhas, e a experiência colhida nas primeiras tímidas campanhas de salubrização e sequentes bairros, construídos na periferia, estão intimamente ligadas ao lançamento, em 1956, do chamado “Plano de Melhoramentos”. O referido Plano define como objectivo a construção de 6000 fogos no prazo de dez anos. A Câmara cumpre, concretizando a maior e mais sistemática operação de rejeição para a periferia de populações urbanas de baixo rendimento, deixando ao longo do tempo da sua execução um rasto de acontecimentos cujos aspectos negativos e fortemente repressivos assumiram formas de rara violência. A ocupação das casas nos bairros foi concedida a título precário e sob a obrigação do cumprimento rigoroso de um regulamento que, entre outras coisas, obrigava no seu artigo 9º a “ter bom comportamento moral e civil”, podendo os ocupantes das habitações vir a ser desalojados “sempre que se tornem indignos do direito concedido”. Foi a extrema violência do regulamento camarário e a requintada política de divisão dos moradores que conteve em “limites razoáveis” a revolta latente nos bairros.
     Alguns actos de revolta individual originaram, ao longo do tempo, uma enorme teia de ficheiros e castigos.
     Existia, no Bairro de São João de Deus, conhecido por Tarrafal, o “Bloco dos Condenados” para onde a Câmara deportava os malcomportados. Era a última instância antes da camioneta, conhecida por todos, transportar as mobílias para o canil municipal.
     A construção de bairros camarários vai-se prolongar até ao 25 de Abril: 44 bairros, com 17 000 fogos e 50 000 habitantes. Os que restaram no centro da cidade fizeram o SAAL (Seviço de Apoio Ambulatório Local) que foi, no Porto, a consciente e assumida negação deste passado recente.
     O Bairro de São João de Deus foi demolido à ordem de Rui Rio na lógica, recuperada, do direito de aplicação da justiça pelas próprias mãos. Os seus habitantes, de “maus costumes”, foram, pela segunda ou terceira vez, desalojados e dispersos pela paisagem do urbanismo difuso.

2.
O lançamento do Plano de Melhoramentos “cujo desenvolvimento progressivo virá irresistivelmente a conduzir à remodelação profunda da cidade tradicional” foi o motivo próximo que levou a Câmara do Porto, na defesa da sua aplicação, a contratar o arquitecto Robert Auzelle para dirigir o Gabinete de Urbanização. Auzelle acaba por orientar todo o trabalho, no sentido de dar alguma coerência às iniciativas em curso, o que se traduziu no seu Plano Director, concluído em 1962. Mas este projecto de disciplina urbanística tão “moderno” e “racional”, nunca aprovado em Conselho de Ministros, foi utilizado como “plano álibi”, servindo para o sistema se adaptar ora às exigências de “racionalidade” que o desenvolvimento económico impunha, ora às actividades especulativas do capital fundiário.
     Decorrentes do Plano, alguns aspectos trágicos para a cidade foram, parcialmente, realizados, como os novos alinhamentos para as ruas, para facilitar o tráfego automóvel e que acarretaram vastas demolições de edifícios antigos e de uma bela arborização oitocentista ou a construção da Via de Cintura Interna que dividiu a cidade. Outros, felizmente, não tiveram tempo, nos novos tempos de “revisão do moderno”, como a proposta de demolição total do Barredo/Ribeira, substituída pelo magnífico trabalho de renovação urbana, projectado para a zona pelo Arquitecto Fernando Távora com a colaboração de Manuel Telles, autor do projecto para o Bairro do Aleixo, aliás realizado de acordo com o Plano Auzelle.
     A inteligente implantação de cinco torres num terreno inclinado para o rio, voltado a Sul, destinava-se ao excedente de habitantes do Barredo, então a área de maior densidade da Europa. Pensamos não existir nenhum paradoxo na utilização de soluções de raízes aparentemente tão contraditórias, no Barredo, recusando o plano Auzelle, e no Aleixo aplicando-o. Pelo contrário, pareceu-nos muito positivo que a aplicação de soluções apropriadas, em cada circunstância, não estivesse sujeita a nenhuma ortodoxia conceptual.

3.
Os primeiros desenhos para o Bairro do Aleixo datam de 1968, mas a sua construção só ficou concluída em 1976. O conjunto de cinco torres de 13 pisos contém 320 fogos, 64 por torre. Cada piso é composto por dois T2, dois T3 e um T4 que se organizam à volta de uma galeria aberta para um saguão central. Para esta galeria abrem-se as zonas de entrada e de serviço dos fogos, bem como o sistema de acessos verticais, caixa de escada e dois elevadores. Dada a forma subtil como os fogos, agrupados em três volumes, se articulam à volta da galeria, bastante aberta para o exterior a Norte e a Sul, a torre que, quanto a nós, sustentaria com vantagem mais pisos, tem uma forma, apesar disso, muito pouco compacta. A verticalidade do conjunto era acentuada pelo revestimento inicial de fibrocimento, solução igualmente proposta por Álvaro Siza para o edifício do supermercado Domus, ali bem perto.
     A solução, muito engenhosa, associando saguão e galeria, embora bastante adulterada nas suas dimensões, inicialmente bastante mais generosas, aproxima-se em qualidade do melhor que se construiu, seja na Itália neo-realista, nos projectos da Ina Casa, seja em Portugal, nas torres, mais tímidas, de Teotónio Pereira nos Olivais Norte. Nada de parecido com os projectos franceses HLM que, mesmo esses, Lacaton e Vassal se propõem recuperar. Trata-se, pois, de um projecto informado, culto e inovador, no nosso contexto, que mereceria melhor sorte do que o abandono a que esteve sujeita a sua manutenção e a inexistência dos equipamentos previstos ou do tratamento dos espaços exteriores. A própria escola primária que ali existiu encontra-se hoje desactivada, aberta a todos os vandalismos.
     Qualquer município que preze o seu património contemporâneo já teria classificado este conjunto como de interesse arquitectónico, pelo menos concelhio.
     Um intenso e rápido processo de degradação foi atingindo o bairro sob o olhar atento da cidade que o ia envolvendo no seu crescimento, classe média-alta, para ocidente, invejando aquela localização ímpar. “É uma pena, mal empregado!”
     A degradação física dos edifícios foi acompanhada pela degradação social de parte da população, sobretudo numa das torres onde se negoceia droga à vista de todos; sobretudo dos que a procuram num corrupio de táxis e carros de luxo. A polícia observa, quase sempre de longe, interceptando alguns consumidores de mais baixa condição.

4.
Aberto o debate sobre o futuro do Bairro do Aleixo, começam a aparecer os inimagináveis argumentos a favor da sua demolição. A razão que move Rui Rio é, sobretudo, a degradação dos costumes: se numa torre com 64 fogos existem um ou dois traficantes, deita-se o prédio abaixo e a seguir, já agora, o bairro inteiro. Assim se liberta o terreno para melhores dias de uma ocupação de luxo, em condições de implantação excepcionais. A Câmara realojará uma pequena percentagem de moradores em edifícios devolutos do centro da cidade e a empresa imobiliária realojará o restante, não sabemos bem onde, mas, com certeza, adoptando uma tipologia mais apropriada para populações de baixo rendimento. E nesta questão da tipologia quase todas as formações políticas estão de acordo. Exceptuam-se o Bloco de Esquerda e a Dr.ª Elisa Ferreira que descolou das posições anteriores do Partido Socialista.
     As habitações em altura, tipo torre, não são apropriadas para habitação social, dizem. O próprio para pobres é “r/c 3” porque evita os elevadores. Os menos válidos ou os velhos subirão alegremente os diversos andares até sua casa às costas de familiares e amigos. Assim se evita que fiquem presos em casa num 11º ou 12º porque os elevadores, sempre avariados, pela sua inépcia e mau jeito, não os podem transportar. “Habitação social em altura não faz sentido”, afirmou Nuno Cardoso. Os CDUs também acham, mas pensam que os moradores devem ser consultados sobre o seu futuro: demolir, claro, e construir ao baixo, no mesmo lugar mas mais denso, limitando as vistas para o rio que só interessam aos mais ricos. Afinal as tipologias são “de classe”.
     Os arquitectos calam-se, na sua maioria. Só Siza diz: “Habitação social? Como se se tratasse de uma especialidade autónoma. A habitação é uma presença constante na cidade e é sempre social.”
     Iniciamos esta pequena nota com uma história de violência fascista, terminamos com uma história idêntica de violência. Assim vai a nossa democracia.|

 


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